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A Journey through the Desert

( First posted in Portuguese,  in March 2016) For Julia , The Princess with the Green Slippers 'Julia! Bernardo!&...

Monday 22 November 2010

O Porche

Dedico este conto
a alguém muito especial,
que um dia prometeu:
«...tentarei que nunca te pareça que te tiro o rebuçado.»



           Gosto de entrar em lojas de velharias, daquelas em que mal podemos passar pelos corredores estreitos e atafulhados, sem deixar cair alguma coisa. Nunca compro nada, pois gosto do novo, sem história própria – talvez isso se deva ao desejo de que, com o passar do tempo, essas coisas a cheirarem a novo fiquem impregnadas com a minha história.
           Então porquê a atracção pelas lojas de velharias? Boa pergunta. O que falta é uma resposta à altura. Para ser sincera, não faço a mínima ideia porque entro nessas lojas com cheiro a mofo e ar coberto de pó que só me faz espirar.
           Entro à procura de algo que sinto que devo encontrar. O que é, isso já não sei. Sinto que numa dessas lojas escuras e pouco arejadas, repletas de quinquilharia até ao tecto, há algo que espera ser encontrado.
vvv
           Foi num Domingo chuvoso que o encontrei. Tinha ido dar um volta pela parte velha da cidade, para quebrar a monotonia e fugir ao estado de espírito depressivo que ameaçava tomar conta de mim. Munida de umas galochas, feias mas prácticas, um chapéu de cera à pescador, e uma gabardine verde, lá fui eu de passeio, pelas ruas desertas das três da tarde. Só mesmo uma louca para sair naquele tempo ofensivo...
           A loja estava aberta, mas ainda mais cheia com os pedaços e pedacitos de coisas sem par, que costumavam estar no passeio para chamar a atenção dos possíveis clientes, mas que, por motivos óbvios, hoje não haviam sido expostos na rua.
           Não havia ninguém na loja; nem mesmo o dono estava à vista.
           – Boa tarde...vou só dar uma vista de olhos. – disse, mas apenas ouvi o eco da minha voz em resposta.
           Devagarinho, para não derrubar nada, lá fui avançando até ao fundo, examinando cuidadosamente o caos organizado das estantes. Como sempre, buscava, nada em particular.
           Foi num dos cantos que me vi reflectida num enorme espelho antigo, com uma moldura trabalhada, com a tinta doirada a lascar. Provavelmente, teria pertencido a uma boutique chique, mais preocupada em vender do que encontrar o vestido certo para as suas clientes, pois seguramente destorcia, lisonjeiramente, a figura do observador. Apesar da capa de chuva pouco favorecedora, o que via no espelho era uma figura discretamente mais alta e delgada. Se não fosse pelo tamanho, até que consideraria adquiri-lo, para me espevitar o ego pelas manhãs...
           Nesse momento os meus olhos fixam-se num pequeno objecto branco e vermelho, reflectido no espelho, entre livros antigos e vasos Ming de imitação. Voltei-me e dirigi-me para a estante que cobria a parede de uma ponta à outra: Lá estava ele, um porche miniatura, coberto de pó. Soprei e passei a manga da gabardine ainda húmida sobre ele – o que me custou um novo ataque de espirros. Mas valeu a pena, pois a atracção tornou-se ainda mais poderosa. Que preciosidade! No banco de trás havia partituras de música, o que me pareceu serem manuscritos de alguns livros, um copo de cerveja com um rebordo a ouro, requintado, um alfinete de fraldas de bebé, uma bola de futebol, e esquecida no chão, uma bolsa de serapilheira atada em forma de ananás...
           Não sei porque me fascinava tanto aquele carro em miniatura.
           Sou daquelas pseudo-feministas que nunca se deram ao trabalho de aprender a mudar um pneu furado, nunca possuiram um cabo para ligar a bateria (tendo, por isso que activar o seguro sempre que um pneu está em baixo ou a bateria falha), e que se enerva quando a luz da gasolina se acende...Outra vez?!? Porque será que o carro não anda a ar?
vvv
           Tinha que ser meu...Por isso, voltei à bancada coberta com um montão de coisas dispostas umas sobre as outras e que também servia de caixa, e chamei de novo:
           – Se faz favor...Está alguém? Queria pagar uma coisa...Oi! Está alguém?
           Já estava a pensar se deixaria um bilhete a dizer que havia levado o carro e que passaria no dia seguinte a pagá-lo quando, de lado nenhum, apareceu uma mulher com ar de ser muito velha, mas com um brilho radiante nos olhos.
           – Estou aqui, minha filha...Ah, vejo que encontraste o carro de rali. Faz tempos que o tenho...possivelmente há quase três décadas, e ninguém se interessou por ele. Deve ser para o seu filhote...?
           – Não tenho filhos. – retorqui, um pouco arisca. Porque será que toda a gente partia do princípio que já deveria ter filhos?
           – Não? – a velha parecia surpreendida. – Com a sua idade já tinha tido seis.
           – Pois, os tempos eram outros...Quanto quer pelo carro?
           – Mas se não é para o seu filho...
           – Já lhe disse que não tenho filhos!
           – ...porque o quer levar?
           A minha paciência estava por um fio, mas vendo o rosto da mulher fechar-se um pouco e receando que acabasse por dizer que o carro não estava à venda, mudei o tom e acrescentei:
           – É para mim. Há anos que entro neste tipo de lojas à procura de algo...nunca soube o que buscava, até hoje. Quando vi o porche empoeirado, reflectido no espelho lá do fundo, soube que era isto que desejava. – e depois um pouco mais envergonhada pela confidência, perguntei – Faz sentido?
           – Sim, minha filha, faz todo o sentido. Um dia descobrirás porquê; nem sempre as coisas fazem sentido no momento em que acontecem, só depois em retrospectiva...Leve-o. São cinco euros.
           – Tem a certeza? – parecia-me pouco.
           – Nem lhe pediria nada por ele, mas creio que não aceitasse levá-lo sem pagar.
           – Tem razão. Obrigada.
vvv
           Essa paixão pela miniatura não tinha justificação possível. Onde a guardarei? Seguramente, nalgum lugar de destaque, onde seria a última coisa a ver ao deitar e a primeira ao levantar...Onde mais, senão na mesinha de cabeceira! Sim, ali ficaria até pelo menos a curiosidade, quase obsessiva, da sua aparente importância fosse satisfeita.
           O carro foi, naturalmente, excrutinado por todos os ângulos e mais duas características foram descobertas: primeiro, todos os objectos, à excepção da bolsa de serapilheira que rolava de um lado para o outro, acompanhando os movimentos do carro, estavam bem presos – com cola, talvez – ao interior do carro. A segunda curiosidade que havia passado despercebida no início, foi a chave na ignição, como se esperasse que alguém a rodasse e pussesse o carro em andamento. Mas para onde iriam? Isso até seria divertido saber-se...
           No entanto, já são horas de dormir. Estico o braço para carregar no interruptor do candeeiro e, para meu espanto, oiço-me dizer 'Até amanhã!', por debaixo da respiração sonolenta.
vvv
           – Deve ter-se enganado na loja, menina. Ontem foi Domingo e nunca abrimos aos Domingos. Estivemos fechados o dia todo e...não, não trabalha aqui nenhuma senhora de idade. Este é o meu negócio e trabalho sozinho.
           – Mas olhe bem para esta miniatura, não a tinha aqui na loja? Estava na prateleira à frente daquele espelho enorme que tem lá no fundo...
           O dono da loja das quinquilharias já demonstrava sinais de estar a perder a paciência.
           – Minha senhora, como lhe disse há pouco, não comprou esse carro aqui...não há nenhuma idosa a trabalhar neste estabelecimento...nem nenhum espelho no fundo da loja! Se quiser, faça o obséquio de ir confirmar por si mesma.
           – Sim, acho que o farei, se não se importa.
           E lá fui eu até ao fundo, espantada por a loja realmente parecer diferente e ainda mais surpreendida ao descobrir que o espelho doirado não fazia parte do recheio.
           Com um muito obrigada envergonhado por ter passado por louca, saí da loja um tanto ou quanto confusa e desorientada.
           Ao chegar a casa dirigi-me imediatamente ao quarto, peguei nas pinças mais fininhas que encontrei e, com um cuidado redobrado, abri a única porta do carro que parecia abrir – a do condutor – e concentrei-me em agarrar a pequena bolsa de serapilheira em forma de ananás.
           – Nem penses que vou desistir assim tão facilmente – bolas, lá estava eu a falar sozinha. Qualquer dia tinha que me internar a mim mesma.
           Bastou um pouco mais de esforço e agilidade para que o ananás estivesse cá fora.
           Cuidadosamente, abro a bolsita e espreito para dentro. Que desilusão! Parecia estar vazia...Já quase havia decidido devolver a bolsa ao seu lugar, quando vejo um rolito de papel cor de serapilheira – por isso não o tinha visto logo! De novo, recorro à pinça com extremo cuidado, não fosse o papel rasgar-se...
           As minhas mãos suadas tremiam. Definitivamente não podia tocar no pedaço de papel sem antes lavar as mãos...
           Com jeitinho e novamente de pinça em punho, desenrolo-o e qual não é o meu espanto quando vejo aparecem paralvras minúsculas em forma de frase.
           Onde está a malvada lupa? Nunca foi utilizada – uma das tais coisas que não necessitamos mas que compramos porque estão a um preço a que não resistimos! Só que agora, que é precisa...não aparece!
           Quase uma hora perdida à procura da dita cuja, até que finalmente aparece – como que por gozo – num dos primeiros sítios onde havia procurado. Grrrrrrrrrrrr! É sempre assim. Parece que os objectos têm vida própria e que, para quebrar a monotonia, se divertem a jogar ao esconde-esconde.
           Agora, de lupa na mão, dirijo-me à escrivaninha do quarto onde havia deixado a bolsa de serapilheira e o pedaço minúsculo de papel onde se lia...
          
Se te encontras a ler esta mensagem, é porque, por alguma razão, perdeste o rumo e decidiste abandonar o que foste e o que te fez aquilo que és hoje. Tu és o porche de corridas, o pai, o compositor, o escritor, o empresário, o dirigente de clube desportivo, e tudo o mais que fizeste. Não precisas de regressar ao carro se não te apetece, pois tu és o carro. És o carro e tudo o que se encontra dentro dele...mas não és apenas isso: usa o que já és para descobrires novos talentos...e verás que podes ser muito mais do que isso.

Que mensagem linda. Mas para quem seria?
vvv
           No Domingo seguinte, chuvoso, para não variar(!), lá fui eu decidida a falar de novo com o dono da loja de velharias, mas a porta estava fechada.
           – Ai, não, isso é que não! Não fiz todo este caminho para nada.
           E com nova assertividade bati novamente na porta.
           Pum-pum-pum. Nada. Outra vez. Pum-pum-pum. E mais uma vez. Pum-pum-pum.
           Obstinada, teria continuado a tarde toda, se não fosse a porta abrir-se...
           Mesmo à minha frente, a velhota dos olhos brilhantes surge com um sorriso acolhedor.
           – Entre, minha filha. Estava à sua espera.
           – Mas como...?
           – Tire essa gabardine e siga-me. Vamos beber um chazinho quente enquanto falamos. Temos muito que conversar.
           Sem contestar, lá segui a velhota, pasmada por ver que a loja estava de novo diferente, igual à primeira vez que lá tinha estado. Passámos pelos fundos – lá estava o espelho majestoso – e entrámos numa cozinha pequena e acolhedora, toda em tons de azul marinho e branco, fazendo lembrar o mar.
           – Então, diga-me lá, o que a trás por cá?
           Contei a história sobre a loja que era e não era, do porche branco e vermelho, da nota dentro do saco de serapilheira em forma de ananás, da sensação de que tudo aquilo não me era destinado mas sim a outro alguém, que provavelmente estava à espera de tudo aquilo.
           – És muito perspicaz...No início, quase que duvidei que seria capaz de levar a cabo esta missão.
           – Que missão? Não entendo mesmo nada do que me está a dizer.
           – Acredita em Anjos da Guarda, minha querida?
           – Sou Agnóstica...
           – Logo vi. Talvez por isso sejas a pessoa ideal para manter uma mente aberta e desinteressada....Bom – continuou a velhota –, digamos que sou o guia espiritual de alguém que, mais do que nunca, precisa de ser iluminado. Neste momento parece ter-se desconectado com a sua verdadeira essência. É importante que o encontre e lhe transmita a mensagem que encontrou...
           – Mas, como? Se não sei quem ele é?
           – Isso, minha filha, terá que descobrir por si mesma. Aos guias só nos é permitido dar um empurrãozinho em direcção à auto-descoberta; o livre arbítrio é que comanda os humanos. Por isso terá que ser você a encontrá-lo e a entregar-lhe a mensagem...Mas já se faz tarde. Adeus...e obrigada pela sua ajuda.
           E sem saber como, lá estava eu de novo na rua, com a porta fechada como se nunca tivesse sido aberta. Será que tudo aquilo havia acontecido mesmo ou seria apenas uma mera partida delusional da minha mente. Será que para além de falar sozinha também já começava a delirar?
           O carro que segurava na mão lembrou-me que a situação era bem real. Mas como iria descobrir o dono da mensagem?

           Busca-se dono de carro de rali, branco e vermelho, pai, compositor, escritor, empresário, envolvido no desporto, que se perdeu no bulício da vida. Mensagem importante. Favor contactar caixa postal …
          
           Parece suficientemente bom. Agora basta publicar no jornal, todos os fins de semana, cruzar os dedos, e esperar que a pessoa a quem é dirigido se reconheça no pequeno anúncio e me contacte.
           Também será bom surfar a Net para ver se se encontra algo relacionado com ralis e com a matrícula, um pouco sui generis, que aparece no porche: X0X0X0 – abraços e beijos? Sem esquecer o autocolante engraçado colado no vidro de trás:

Podes ultrapassar-me, pois estou com fome de viver!

vvv
           Foi mais fácil do que se podia imaginar. De facto a Net é um mundo onde se encontra de tudo. Consegui o nome do condutor, descobri que vive numa terra pequena onde todo o mundo conhece toda a gente. Não será, com certeza, difícil de dar com ele. O anúncio, esse, deixo-o mais este fim-de-semana e no próximo e, quer tenha sido contactada quer não, vou até à Vila do Monte...

           – Boa tarde. É o Sr. Luíz, o condutor de ralis?
           – Não sou condutor de ralis.
           – Mas já foi, não?
           – Miúda, deixe-se de rodeios e diga lá o que deseja.
           – É assim, tenho algo para o Sr. Luíz e só para ele, mais ninguém. Algo que talvez o possa ajudar.
           – Eu sou Luíz...Mas, e você? Quem é?
           – Está aqui o meu cartão e o carro miniatura que encontrei numa loja de velharias com uma mensagem para si. Contacte-me se precisar de alguma informação, não que lhe possa dizer muito mais do que já lhe disse. Bom, não lhe tomo mais o seu tempo.
           – Espere, não se vá já embora.
           Muito sucintamente e um pouco constrangida, lá lhe contei como o carro tinha vindo parar às minhas mãos, como tinha descoberto a mensagem no saco de serapilheira, o anúncio do jornal e como finalmente havia descoberto onde morava...Claro que, para não ser tomada por louca, omiti a parte da velhota dos olhos brilhantes e da loja que nem sempre era o que parecia.
           – Não quero nada de si, apenas quero entregar-lhe o carro e a mensagem que julgo pertencer-lhe. A partir daí é consigo, pode guardá-lo, oferecê-lo a alguém, o que lhe apetecer...Mas – acrescentei – se de facto a mensagem fizer algum sentido para si, não posso negar que sinto certa curiosidade em saber como isso ajuda...nem que leve três meses ou três anos a contactar-me, pois a situação é, de facto, única.
vvv
           Ano e meio passado desde que havia recebido o 'presente', e que estranhamente o havia feito reencontrar o caminho, Luíz encontrava-se sentado à secretária, rodando entre os dedos o cartão de visita que aquela estranha um dia lhe havia dado.
           Alguma vez se decidiria a confiar numa desconhecida? Deveria telefonar-lhe? Ir vê-la pessoalmente? Ou simplesmente rasgar o cartão? Eis o dilema com que se debatia.

           No mesmo dia, à mesma hora, exactamente um ano e meio depois de ter visitado o Sr. Luíz, Paulina também estava perdida em pensamentos. Perguntava-se como tudo teria evoluído para aquele homem que apenas vira uma vez. Se a mensagem havia feito algum sentido para ele, se havia actuado sobre ela ou se a havia deitado fora...
           Por mais curiosa que estivesse, não tinha mais remédio do que respeitar a sua escolha. Contudo, no fundo, no fundo, desejava muito ser contactada e tentar dar um sentido a tudo o que lhe havia acontecido...lhes tinha acontecido.

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Sunday 21 November 2010

Cada um na Sua Cama

           – Então Patajeca, já sabes quem chega hoje? – pergunta o Avô Asa-Para-Toda-A-Obra, enquanto muda as pilhas do piano portátil da neta.
           – Claro, a Mamã já me disse. Hoje chega a Tia Pataluxa, que anda sempre de avião.
           – Ha, ha...é essa mesma. Só que hoje não vem de avião.
           – Não?
           – Não, a Avó Patachoca foi ao Norte buscá-la...
           – Qual Norte, Avô?
           – Ao Norte de Portugal, que é onde a tua tia está agora a trabalhar. Por acaso até se pode ir lá de avião, mas como não é assim tão longe, pode-se ir perfeitamente de combóio ou de carro.
           – E a Avó Patachoca foi lá de carro?
           – Não, Patajeca, ela foi de combóio, e agora voltam as duas no carro da tua Tia.
           – Ai é? Então porquê?
           – Então a tua mãe não te contou essa parte, Patajeca patareca?
           O Avô Asa-Para-Toda-A-Obra gostava de arreliar a neta e ela a ele. A bem da verdade, andavam quase sempre às turras, mas divertiam-se assim.
           – Grrrrrrrrr! – desde que entrara para a escolinha, Patajeca havia aprendido muitas coisas novas e interessantes, outras um tanto ou quanto tontas – embora engraçadas – como o rosnar para fingir que já não estava a gostar da brincadeira...Vai-se lá entender o que se passa na cabeça de uma patinha em crescimento.
           – ...Se calhar até contou mas eu já não me lembro. – acrescentou entre bico.
           – Ha, ha... – riu-se o Avô Asa-Para-Toda-A-Obra divertido – Vêm no carro da tua tia porque ela partiu a asa esquerda e não pode ficar lá no Norte sózinha. E como está com a asa ao peito, também não pode ser ela a conduzir. Por isso a tua Avó foi lá buscá-la.
           – Hummm! – fez Patajeca, franzindo o nariz – Que complicação.
           – Não é nada complicado. Eu explico. É assim...
           Mas antes que pudesse continuar com a explicação, ouviram buzinar lá fora. A Avó Patachoca e a Tia Pataluxa acabavam de chegar.
           Uma curiosidade da família da Avó Patachoca é que, de cada vez que se vai às compras ou se tem o carro cheio de malas, caixas e saquitos, buzinam e dão tudo pela janela da cozinha, que embora não seja muito baixa, dá perfeitamente para passar as coisas para dentro de casa. É mais práctico e poupa-se tempo...
           – Olá! Então, fizeram boa viagem? – pergunta o Avô Asa-Para-Toda-A-Obra, enquanto recebe uma das malas.
           – Sim, correu tudo bem. Não apanhámos muito movimento e só choveu um pouco quando saímos de lá. – responde a Avó Patachoca.
           – Adivinha quem passou cá a tarde e vai jantar connosco?
           Mas a Patajeca estava tão excitada por ver a Avó que nem a deixou adivinhar.
           – Sou eu Vó, sou eu! A Mamã também vem jantar.
l
           Depois dos abraços e beijinhos – claro que a Tia Pataluxa só pôde dar e receber meios abraços por causa da asita partida – foram para o quarto que antes havia pertencido à Pataluxa e à Patisoca e que agora pertencia à Patanita, a irmã mais nova.
           A Madrinha Patanita, que entretanto tinha chegado do trabalho, olhou para a irmã e disse:
           – Olha, a Patajeca dormiu na tua cama apenas uma noite, por isso não mudámos os lençóis. Não te importas, pois não?
           – What? Did you sleep in my bed, Patajeca?1
           Lá estava a Tia Pataluxa a falar Inglês. Sempre falou com a Patajeca em Inglês, aliás, desde que nascera. A Tia era professora de inglês e dizia que, no futuro, todas as crianças falariam a sua língua materna mais o Inglês, para além de saberem usar computadores como profissionais. Por isso insistia em falar-lhe só naquela língua estrangeira. E, apesar de não se verem assim tantas vezes, a Patajeca já entendia muita coisa! Também não era de estranhar pois, para além da prática ao ter que se esforçar por entender a Tia, a Patajeca era uma patinha inteligente e também já tinha aulas de Inglês na escolinha, com a Miss Pataresa.
           Por essas razões todas, a Patajeca olhou para a tia com um sorriso meio traquina meio envergonhado, e respondeu:
           – Yes.
           – Oh, you did, did you? And did Mommy Patisoca sleep with you in my bed, too?
           – No! - respondeu Patajeca, virando-se agora para a avó a pedir ajuda. – Diz-lhe que só durmo com a Mamã quando estou em casa.
           – Pataluxa, Patajeca says that she only sleeps with her mommy at home. – traduziu a Avó Patachoca.
           Depois, virando-se para a neta, pergunta com a cara um pouco mais séria:
           – Então, Paixão-do-Meu-Coração, em casa não tens a tua própria caminha, o teu próprio quarto?
           – Oh, Vó, claro que tenho! Já o viste muitas vezes...
           – Sim, mas agora estás a dizer que dormes com a tua mãe...
           – ...Só quando o papá trabalha de noite. Assim dormimos as duas mais quentinhas.
           – Mas, Patajeca, o Papá Patunes trabalha muitas vezes de noite...e tu já és crescidinha, já andas na escolinha e tudo. Não gostas do teu quarto, é isso?
           – Nãaaao! – disse Patajeca, deitando as mãos à cabeça – um gesto de desespero muito típico nela. Será que a Avó já não se lembrava de como era o quarto dela?
           – Já estiveste tantas vezes no meu quarto...sabes bem que é muito bonito, com muitos brinquedos e uma cama super confortável!
           – Lembro-me bem de como é o teu quartito...o que não entendo é porque uma patinha da tua idade ainda dorme na cama da mãe.
           – Oh!
           – Não é 'Oh!', Patajeca...estou a falar muito a sério. Qualquer dias passas para a escola dos meninos crescidos e não podes, ainda, estar a dormir com a Mamã. Assim vão dizer que és uma bébé.
           Ao ouvir isso, a Patajeca inclinou a cabeça um pouco para a direita e juntou as sobrancelhas como se estivesse a pensar bem no que lhe estavam a dizer. Até que fazia sentido...
           – Além do mais, – acrescentou a Avó Patachoca – o teu quarto tem que crescer contigo, para ser sempre o teu cantinho especial, um lugar onde te sintas bem a estudar, a ler, a brincar...e para poderes montar lá a tua tenda para quando as tuas primas te vierem visitar e poderem brincar às casinhas.
           Patajeca continuava a ouvir com atençao, por isso a Avó Patachoca continuou com o seu discurso.
           – ...À medida que fores crescendo, vais ter que comprar uma cama maior para caberes nela, mas o teu quarto será sempre especial.
           – Pode ser...Mas não me posso mudar para lá já-já, senão, a Mamã fica triste.
           – Senta-te aqui no meu colo, minha patinha linda...Fazemos assim, hoje quando a Mamã chegar para o jantar, perguntamos-lhe o que ela pensa sobre tudo isto. Concordas?
           – Hummmm...OK, concordo. – disse Patajeca hesitando um pouco.
l
           À hora de jantar e depois da Tia Pataluxa contar mais uma vez como tinha escorregado no chão da cozinha, voado sem controlo até ao corredor para finalmente embater na porta do armário, deslocando assim o ombro para debaixo da asa onde se encontra o sovaco, a conversa mudou para o tema de quartos e camas.
           – Patisoca, – começou a Avó Patachoca – hoje quando cheguei do Norte tive uma conversa surpreendente com a tua Patajeca.
           – Ai, sim? Falaram sobre o quê?
           – Sobre ela ainda dormir na tua cama. Claro que eu estranhei que uma menina tão grande ainda dormisse com a mãe, e até pensei que fosse por ela não gostar do quarto...
           – ...Mas eu disse logo que não era isso. – interrompeu a Patajeca. – O meu quarto é muito bonito.
           – Yes, that's true...So, my Gorgeous, tell Mommy why you still sleep with her.
           Cada vez que a Tia Pataluxa falava, Patajeca tinha que concentrar-se um pouco mais. Mas apesar de não entender todas as palavras, conseguia perceber o que a Tia estava a dizer- bem, mais ou menos...
           – Eu disse, – continuou Patajeca, olhando a Tia-quase-estrangeira de soslaio – que era porque dormíamos mais quentinhas juntas...e porque a Mamã ficaria triste por dormir sózinha.
           Era o momento da verdade, e Patisoca viu que tinha que aproveitar esse momento para ajudar a filha a dar mais um passo para se tornar um pouco mais crescida e independente.
           – Patajeca, é claro que gosto muito de dormir contigo e tu serás sempre a minha bébé apesar de estares a crescer tão depressa. Sabes, na realidade já há uns tempos que andava a pensar que devias mudar para o teu quartinho, que é super confortável e está tão bem decorado; tens todas as tuas bonecas amigas a dormirem sózinhas - acho que elas ficariam muito feliz por te ter lá com elas...É verdade que és a minha bébé, mas também sabes que já és grandinha: já andas na escolinha e tudo!
           – É verdade. – disse a Patajeca – Mas, não ficas triste se eu me mudar para o quarto do lado?
           – Claro que não. Vais continuar à mesma tão pertinho de mim e do Papá Patunes, que nenhuma de nós vai sentir a diferênça.
           – És capaz de ter razão, Mamã.
           – Além do que, o beijinho e o abraço ao deitar e ao acordar, esses vão estar sempre aí. Boa?
           – Boa!
           – Então, quer dizer que te mudas hoje para o teu quartinho? Olha que a cama já está feita há uns tempos. Está à espera que voltes para lá definitivamente.
           Patajeca demonstra um pequeno momento de hesitação mas, logo de seguida, diz com uma voz mais confiante:
           – Pode ser...Hoje mudo-me para o quarto do lado. Para o meu quarto.
           E, de repente, à mesa de jantar, já se estava a falar de outras coisas: do tempo chuvoso, dos amigos da escola da Patajeca, de futebol, de livros, de política...enfim, de tudo e mais alguma coisa.
l
           No dia seguinte, estava ainda a Avó Patachoca a dormir por causa do cansaço da viagem do dia anterior, quando o telefone toca. Quem atende é o Avô Asa-Para-Toda-A-Obra; do outro lado da linha, encontra-se a Patajeca, toda excitada a querer falar com a sua avó.
           – Porque não me dizes o que queres da vóvó, que eu depois dou-lhe o recado? É que ela está muito cansada da viagem que fez ontem, do Norte até Lisboa...
           – Não, não pode ser. Preciso muito, muito falar com a vóvó antes de ir para a escolinha. É um assunto muuuuuuuiiiiito importante.
           E como o Avô Asa-Para-Toda-A-Obra quase nunca consegue dizer que não à neta, lá vai acordar a mulher.
           – Sim, Patajeca – diz a Avó Patachoca com um quack um pouco rouco de sono. – que me queres dizer que é tão urgente?
           – Sabes Vó, ontem dormi sózinha na minha cama – bem, sózinha, sózinha não...dormi com uma das minhas bonecas...e dormi muito bem. Logo à noite vou escrever isso no meu livro da positividade!
           – Fazes muito bem, minha lindoquinha. E, parabéns! Estou muito orgulhosa de ti.
           – Também eu. Bom, eu também estou orgulhosa de mim...
           Como diz a Avó Patachoca, 'cada um na sua cama!'

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Saturday 13 November 2010

A Call for ACTION

YES, this is a call for action, your action
Do let me know your opinion by dropping in a comment.

All my texts are copyright and I am seriously thinking about having them published.  Suppose that's the next step...However, it would be nice to get some feedback beforehand. Your comments would certainly be invaluable!

Thank you very much for your interest in my blog.


«Art is the imposing of a pattern on experience, and our aesthetic enjoyment is recognition of the pattern.» -  Alfred North Whitehead

Rings of Saturn

Strong wind
why do you blow me deep into the forest night?
strong wind
don't abandon me –
I'm alone and scared
in this forest
blind

Why drive me to this cave?
Why lead me to this binding darkness?
…...................................................Why...?

One thing is clear:
you've got me where you want me
and there's no going back

Cold, damp walls
closing in on the way down
I can hardly breathe,
as I sail further down

Down and down I go
alone
my heartbeat –
out of control

Ba-bump, ba-bump, ba-bump
my heart -
about to shut down -
is rescued by an eagle
diving down
...or is it that I've become one?

Up and up I go
up above so high –
so high...
I can almost touch the sky!

With other eagles
I dance and dance around till
they and I
become
One

There's no Time:
first an eagle,
then a sparrow
and by the time the ground is nigh,
collecting pollen –
a butterfly –
is what I have become

Then an ant,
with a heavy burden on my back,
to the anthill do I go
...and down, and down to the deepest depths again I go

To my surprise
no more claustrophobic walls
do I find

I am free
and up the hill I can climb
with hope – although
still alone

...a moving bridge awaits me now
to cross over to the other side

See the house of sugar and spice?
Surely, that's where I must go.
This time, not down but up
a spiralled tower
I must go
There,
on the floor,
a heavy, leather book lies.

tic-tic-tic
the sparrow hits on the window so
tic-tic-tic
open the book, is that so?

But, oh!
the page is blank
and the next,
and the next as well
my head's throbbing hard,
my heart's pounding
out of control – but
healing hands
soon come to calm my
soul
and solace sleep takes
control

On awakening,
I find myself reflected in a shiny mirror
in a naked foetus curl
Mirror, Mirror on the wall...
not a mirror but a door?

Down the aisle I float
to be married
by the same healing hands...

Hands tied with a pure white cloth,
my prince and I
are at once
twirled around in it
as one

Swirling round and round -
again alone -
to the mountain top
I go

'I'm tired...', I cry out loud.
...The man with the healing hands
responds,
'...but you've just begun!'

So, there I go again
diving down the mountain top
no bungee jumping rope this time
just the dark blue sea below:

A dolphin now...
see how fast I can go
see how deep I can dive
see how high I can fly

See how no one can stop me now!



- COPYRIGHT/Registado no IGAC

O Colibrí e a Flor

Esta é a história de uma bromélia do mato, de pétalas carnudas vermelho-alaranjadas, que um dia se apaixonou por um colibrí colorido.
O primeiro encontro deu-se numa tarde de intenso calor, por volta da hora da sesta da maioria dos animais e pássaros. Como de costume, os colibris eram dos poucos animais que se podiam ver a bailar pelas redondezas, pois são resistentes aos abrazadores e soporíferos raios solares, a seguir ao meio-dia. Bromélia-Flor estava quase a desesperar com o calor quando um belo colibri de cores azul-metalizadas, se aproximou dela, batendo as asas a uma incrível velocidade de 80 vezes por segundo, refrescando-a. Ai, que bem que sabia aquela brisa!
– Olá, jeitosa! Posso molhar o bico nessa tua base robusta e apetitosa?
– Pois, de subtil, não pareces ter nada...vais logo ao ataque. – disse Bomélia-Flor, um pouco chocada com o atrevimento do colibrí.
– Que queres dizer com isso? – respondeu o colibri um pouco consternado, pois não estava à espera que a bromélia sequer lhe respondesse. – É o que eu faço, sorvo o vosso mel e em troca ajudo-vos na polinização.
– Claro que sei disso, mas podias ser um pouco menos grosseiro. Primeiro chamas-me gorda e apetitosa – o que é tudo menos romântico – , e ainda por cima falas em 'sorver' o meu néctar...como se fosses um alarve!
– Que querias que eu dissesse? Apenas me lembro de uma outra palavra que poderia ter utilizado, e essa é que estaria no limite da ordinarice...
– Não, não precisas de me dizer qual é...prefiro ficar no mundo da ignorância. Cá por mim, preferia que me tivesses pedido um beijo...
– És mesmo um tratado. Como te chamas, oh florzinha do mato, com alma de poeta?
– Sou Bromélia-Flor...
– Bromélia-Flor, lindo nome. Eu sou o colibri Alor, encantado de a conhecer...Pensando bem, até acho que vou adoptar esse termo. Serei o Don-Juan dos colibris! O colibri que beija mais de mil flores por dia...
– Mais de mil flores? Que apetite voraz – quase que diria, depravado!
– Hey! Depravado, não...Como crês que conseguiria as 6660 calorias mínimas diárias para a minha sobrevivência?
– 6660 calorias mínimas diárias? – repetiu Bromélia-Flor, um pouco incrédula. Mas não és assim tão grande como isso e não deves pesar mais do que uns meros 3 gramas. Deves estar a tentar impressionar-me...
– 2,5 gramas, para ser exacto. Sim, estou em forma – disse Alor todo orgulhoso – faço muito exercício. Os mais avantajados da minha espécie chegam a pesar 6 gramas! Mas ainda te digo mais – 6660 calorias nem é assim tanto. No tempo frio, a ingestão de calorias pode dobrar...
– Xiiiiiiiiiiiii...! Mas...e não te cansas de andar de flor em flor?
– E, tu, não te cansas de estar aí sempre parada?
– Escusas de ficar todo arisco. Claro que gostaria de ver o mundo, mas como vês, estou presa ao solo e isso é, evidentemente, impossivel. Mas não é assim tão mau, pois sempre vou conversando com os bichitos viajantes que por aqui passam...O certo é que nunca falei com nenhum colibrí.
– Isso deve ser porque só agora é que “amadureceste”....
– Que queres dizer com isso? – replicou Bromélia-Flor, novamente na defensiva.
– ...se me deixasses terminar as frases, não teríamos destes mal-entendidos. Se calhar, apenas recentemente as tuas cores se tornaram garridamente vistosas. Eu, que já ando por aqui há algum tempo só hoje dei contigo. Somos muito sensíveis à cor.
– E antes de andares por aqui, por onde estiveste?
– Hã?
– Hã, não, o quê?...Perguntava se tens viajado muito?
– Apena por estas bandas...há flores, moscas, aranhas e formigas à fartura para me alimentar, sem ter que ir arriscar o pescoço em territário alheio.
– Quem haveria de querer fazer-te mal?
– Quem mais senão os colibris dessa outra área?
– Não entendo...
– Nós os colibris somos muito combativos e defensores do nosso território. Não gostamos que outros colibrís, ou outros pássaros quaisquer, venham meter o bico nos nossos assuntos...– como Bromélia-Flor não fez mais nenhuma pregunta, Alor prosseguiu – então, querida Bromélia-Flor, posso dar-lhe o tal beijinho que me pediu?
– Não fui eu que pedi...– mas, apercebendo-se, pelo olhar matreiro de Alor, que este apenas estava a brincar, acabou por ceder e deixou-se beijar.
O beijo não durou mais do que os normais 5 segundos, mas foi tão doce e tão intenso, que tanto Bromélia-Flor como Alor ficaram uns segundos sem ar e sem fala. O coração de Alor atingiu as 1800 batidas por segundo, de tal forma que Bromélia-Flor as conseguia ouvir e, a certo ponto, quase que jurava que as estava a sentir.
A romântica Bromélia-Flor estava nas núvens e o até então polígamo Alor estava confuso com o turbilhão de sentimentos que lhe percorriam o corpo todo. Mas, macho como era, lá conseguiu recompor-se.
– Bromélia-Flor, gostei muito deste tempo que passei contigo...
– Sim, eu também – interrompeu a flor, com uma voz entristecida, prevendo a despedida que se seguia.
– ...e gostaria de te pedir permissão para, a partir de agora, poder passar por aqui todos os dias, à mesma hora, até ao resto das nossas vidas, para podermos conversar um pouco...e eu te roubar um beijinho.
– Ora essa – disse Bromélia-Flor, com as pétalas um pouco mais ruborizadas – não precisas de roubar...eu dou-te todos os que quiseres.
          

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Monday 8 November 2010

Nadando com Peixes

            O despertador tocou às seis e meia, tal como acontecia dia após dia desde que conseguia lembrar-se. Conhecia bem a rotina; levantar-se, lavar-se, vestir-se, comer qualquer coisa e ir para o trabalho. Por que haveria hoje de ser diferente?
            Já no patamar, carregou no botão para chamar o elevador. Aquele minuto que ele demorava a chegar parecia sempre o mais longo. Porque seria? Pronto, cá estava ele.  
            Segurou a pasta firmemente contra as pernas, enquanto o elevador descia. Trigésimo segundo andar. Trigésimo primeiro. Trigésimo. Ao chegar ao vigésimo oitavo andar, parou. A porta abre-se para dar entrada a outra pessoa, mas não está ninguém no patamar. Vigésimo nono. Vigésimo. A porta volta a abrir. Ninguém. Quem lhe dera que estivesse ali alguém. 
            A porta abre-se outras duas vezes antes de chegar ao rés-do-chão. Ela sai do elevador sem olhar uma só vez para o espelho que está atrás si.
v
            Ninguém fala. Na verdade, nem sequer levantam os olhos quando ela entra na sala de convívio. Há quinze anos que trabalha naquela empresa. Era de esperar que se lembrassem do seu aniversário. Mas nada. Nem sequer um «olá». Por que se haveriam de lembrar, se ela própria não se tinha dado ao trabalho de vestir o vestido novo que comprara, na semana anterior , especialmente para essa ocasião. Prometera a si própria que a sua vida mudaria depois do aniversário. Que ridículo! Como poderia um vestido alterar tão radicalmente a vida de uma pessoa? Fosse como fosse, mesmo que ele possuísse poderes mágicos, estes tinham-se evaporado, mesmo antes de ela ter chegado ao elevador.
            Será  que dariam por isso se ela não aparecesse para trabalhar, um dia... nem no outro, nem no outro... nunca mais... para sempre? 
v
            «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade». Palavras sábias. Pelo menos tinham-na tocado quando o seu apresentador preferido as pronunciou na televisão.
            «Fazem muito sentido», pensou, sentindo um arrepio de excitação percorrer-lhe a espinha ao ter a sua  Epifania. «É agora ou nunca». Agarrando no casaco e bolsa, saiu de casa. Até o elevador pareceu descer de forma diferente os trinta e três andares, flutuando suavemente. E, pela  primeira vez em tantos anos – mal se recordava da última vez em que isso tinha acontecido – a porta abriu-se e alguém entrou. Ela olhou para cima, para os números vermelhos que brilhavam por cima da porta – vigésimo andar. Nunca parecia lá estar alguém quando o elevador parava para recolher passageiros. Sempre se interrogara quem chamaria o elevador para depois não entrar nele.
            Ele devia estar perto dos cinquenta anos de idade. Trazia as calças de ganga seguras por um cinto apertado sob a barriga saliente, a camisa desabotoada até ao umbigo e um crucifixo dourado e grosso pendurado ao pescoço, num fio de malha grossa. O novo passageiro entretinha-se a limpar entre os dentes com a unha comprida do dedo mindinho. Não era a coisa mais agradável de se ver, mas teria adorado ouvi-lo dizer «Boa Tarde».
            «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade. «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade. «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade.» Com a confiança que lhe era conferida pelo poder do número sagrado, três, deu por si a dizer «Boa Tarde». No entanto, ou a sua voz lhe saiu demasiado fraca, apenas murmurando as palavras, ou o homem a ignorou, prosseguindo com a limpeza dos dentes, com maior afinco, acrescentando alguns efeitos sonoros à operação.
            Ela não se deixou derrotar. Afinal, o facto de alguém ter entrado no elevador, já era bom sinal, não era?
            Entrou numas quantas lojas e percorreu os expositores de roupa, sem que alguém lhe prestasse atenção. Nenhuma das empregadas de loja olhou sequer para ela.
            Na montra da loja seguinte, os seus olhos pousaram no mais belo vestido azul-marinho que alguma vez vira. Era mesmo o que ela queria, discreto mas classe. Usá-lo-ia no dia do seu aniversário, daí a uma semana.  Ajudá-la-ia a começar de novo.
            Entrou na loja e pediu para o experimentar. Era o único que restava e parecia ser o seu número. Que sorte!
            A empregada da loja olhou-a de alto abaixo e perguntou-lhe se não seria melhor experimentar outro vestido que tivesse um preço mais acessível. Com as faces a arder , respondeu que não, que queria experimentar aquele mesmo.
            Na cabina de provas, a sua mente remoía de fúria e vergonha. Verdade seja dita, a vergonha suplantava a fúria, e limitou-se a despir-se, experimentar o vestido e a voltar a vestir-se, sem nunca se olhar ao espelho.
            – Vou levá-lo – disse. A mulher tinha razão, era caro demais para a sua carteira, mas não podia voltar atrás agora. A excitação que sentira anteriormente estava a dissipar-se a cada passo que dava e, quando chegou ao elevador, a cabeça pendia-lhe, tal era o seu desalento, enquanto o braço arrastava o saco, incrivelmente pesado, que transportava o vestido azul.
            O vestido, que durante momentos fervilhara com promessas de uma vida nova, foi atirado, ainda no saco, para recanto mais escondido e escuro do roupeiro. Depois, ela deitou-se para só acordar na manhã seguinte ao som do despertador. Eram seis e meia da manhã.
v
            Janet. – Sobressaltada, ouviu a voz do patrão chamar pelo intercomunicador. Não que se tivesse sobressaltado por não se chamar Janet. Há muito que se tinha habituado a ser chamada por esse nome. Janet fora a primeira secretária do patrão, há uns vinte e cinco anos atrás e, a partir daí, ele nunca se tinha dado ao trabalho de aprender o nome das secretárias.  Tinha desistido de o corrigir e, muito embora assinasse sempre o seu próprio nome nos e-mails, ele nunca reparava . Na verdade, nunca o lia. Nunca perdia tempo e sempre soubera  distinguir o que era realmente importante e requeria a sua atenção, e o que eram pormenores fúteis. Não era por acaso que lhe tinham dado a alcunha de “Máquina de Fazer Dinheiro”. Sabia que era bom e todos à sua volta também. Não, o que a apanhou de surpresa foi o facto de ele ter utilizado o intercomunicador. Nunca lhe dirigia a palavra, nem sequer para retribuir o seu «Bom Dia, Sr. Lynch», quando passava pela sua secretária de manhã. Era como se fosse invisível. Para além disso, ela podia passar dias inteiros sem o ver. Havia dias em que ele era o primeiro a chegar ao escritório, noutros chegava quando todos tinham saído para almoçar. Verdade seja dita, não precisavam de comunicar. Hoje em dia, tudo podia ser feito através de e-mails.
            – Quer que vá ao seu gabinete, Sr. Lynch?” – perguntou. Talvez tivesse estado a ver os dossiers do pessoal, que lhe tinha deixado em cima da secretária no dia anterior, e se tivesse apercebido de que fazia anos hoje. Estremeceu de emoção.
            – Não é necessário. Como sabe – não sabia, mas não tardaria a descobrir – decidimos fazer uma reestruturação e necessitamos de reduzir o pessoal. Passe pelos Recursos Humanos esta tarde para podermos começar a tratar da papelada. Não precisaremos mais dos seus serviços. Entretanto, envie-me por e-mail os documentos sobre a Smith & Co.
            – Mas... – Mas nada. Ele já tinha desligado.
            Não conseguia parar de tremer. «Acalma-te. Acalma-te. Concentra-te na luz. Estou rodeada pela luz pura da energia. Estou rodeada pela luz pura da energia. Estou rodeada pela luz pura da energia …  Rodeada...Luz...Energia...Finalmente parou de tremer e a sua mente foi dominada pela Sua presença.»
          «Chegou a hora. Estás pronta. Vai ter comigo ao penhasco onde as gaivotas se encontram. Há um banco à beira do penhasco. Espera aí por mim».
            O seu corpo tremia agora de excitação. Ele nunca lhe parecera tão real. Na verdade, era a primeira vez que o seu Guia lhe falava; até então sempre fora apenas uma presença reconfortante que a fazia sentir-se segura.
            Pôs-se de pé, vestiu o casaco e, sem olhar para trás ou uma palavra a alguém, saiu do escritório. 
            Ia já  para lá. 
v
           

– Wheeee... – Estou a voar! Que leveza! Que liberdade! Que beleza! E olhem para aqueles pássaros – eles gostam da minha companhia! Vêem? Eu também consigo voar!
            Fechando os olhos, deixou que a brisa fresca lhe acariciasse o rosto e lhe brincasse com o cabelo. Pela primeira vez na vida, sentia a alegria de estar viva.
            Mas também se sentia a cair a toda a velocidade.
            Abriu os olhos e teve um vislumbre fugaz dos peixes prateados, que nadavam nas águas frias e cinzentas, antes de se juntar a eles.
            –  Ui, isso doeu! Tenho de aperfeiçoar o meu mergulho.
            – Olhem para mim, eu consigo nadar e rodopiar como uma sereia.
            E depois, um silêncio profundo e solitário tomou conta de tudo.
v
            Foi nesse silencio sufocante que Lydia ouviu o seu coração bater pela primeira vez.
v
            Deu por si a correr pelo corredor largo de um palácio, contornando as enormes colunas ornamentadas. Tudo acontecia tão depressa que se sentia tonta. Ou talvez essa sensação fosse apenas resultado da sua descida repentina e em espiral, pela fria escadaria de pedra. Não sabia para onde ia nem por que tão depressa; era como se uma poderosa força magnética a puxasse.
            Havia actividade em cada patamar da escadaria, mas tudo acontecia demasiado longe para que conseguisse distinguir o que se passava, ou estava com demasiada pressa para parar e ver o que estava a acontecer. Num dos patamares, um majestoso anjo, envolto numa intensa luz dourada, olhava directamente para ela.
            Invadida por uma poderosa sensação de bem-estar e amor, parou por um instante, desejando poder ficar. Mas não podia... a força que a chamava do interior da terra era demasiado poderosa, por isso, retomou a sua descida.
v
            A transformação decorria a nível celular. Sentia-o.
            Quando a descida finalmente chegou ao fim, vestia uma túnica longa e prateada e o cabelo, branco-prateado, dava-lhe pela cintura. À sua frente estendia-se um corredor comprido e escuro, iluminado apenas pela luz que emanava de uma esfera de fogo amarelo que trazia nas mãos. No fim do corredor, um berço de madeira esperava a esfera incandescente que imediatamente se transformou num autêntico fogo de artifício de cores. A jovem estava tão extasiada de felicidade que não conseguiu evitar que as lágrimas lhe escorressem pelas faces. Eram lágrimas de sangue.
            Num momento eram lágrimas de sangue e, noutro, tinta ritual no rosto de uma jovem índia, ajoelhada no chão, esfregando energicamente dois paus para acender uma fogueira, enquanto entoava o cântigo da vida: 

Fogo, Fogo
Que ardes tão alto
Chegou a hora
Toca o Céu!
Rostos pintados p´ro alto olhando
Enquanto pés cansados
No solo estéril se

firmam 

Ao ritmo do Caos
avançando
Iluminai-nos,
Ó Chamas Esbeltas!
Guiem-nos pelas mágoas do Tempo
Queimem a dor
De vidas torturadas
Deixem que as suas cinzas
Cubram as planícies
Com sementes de esperança  –
Nem que seja por um só dia  


            Nenhuma chama surgiu. Em vez disso, a figura de um homem com barba surgiu do fumo, apontando para as montanhas que se erguiam ao longe, no horizonte. Era para aí que tinha de ir.
            Durante muito tempo subiu a montanha e, ao faltarem-lhe as forças, transformou-se num puma. No cimo da montanha, o puma transformou-se num homem, que olhou em volta e para longe, para escolher o caminho que devia seguir. Depois, ao saltar para o abismo, transformou-se numa águia, que lutou corajosamente contra os ventos fortes, até surgir a necessidade de outra transformação. Desta vez, um cavalo alado foi chamado a enfrentar o desafio ...
v
            Uma mulher tenta acalmar o animal cansado. – Calma. Acalma-te – diz ela, acariciando a testa de Pégasus. – O mundo não vai desvanecer-se. Tu não vais desaparecer... – E, a pouco e pouco Lydia reapareceu.
v
            Com a mão ainda pousada na testa de Lydia, a mulher gravou-lhe estas palavras intemporais na mente:

Por um campo de narcisos
O pequeno príncipe passeia
Uma rajada de vento sopra
E o mundo que conhece
Dissolve-se.
Agora uma mulher
ao sabor do vento se balança
Na cabeça, uma farta coroa
De folhas
Para os penhascos correndo
            Mergulha!
Imploram os peixes prateados lá em baixo
            Voa!
Gritam as gaivotas esfomeadas lá no alto
            Pára! Não saltes mais!
Rezam os narcisos amarelos
Será que não vês?
É tempo de ficar
Finca os pés bem no solo

Com os teus ramos, afasta as núvens
Agora um carvalho,
Aproeveita o dia
E aprende que esta vida também
Como um momento fugaz
Para sempre desesaparece 

            –  Estás pronta. Regressa e vive esta nova vida.
v
            Assim, portadora da força da índia, do puma, do homem, da águia e do cavalo alado, Lydia inicia a sua longa caminhada até casa – ao longo das margens de um rio e descendo as paredes rochosas de uma majestosa queda de água. Durante toda essa longa viagem, pára apenas uma vez, para apanhar um narciso amarelo. Antes de o seu nariz tocar na flor, dá por si novamente junto do berço, onde encontra um bebé deitado. Consciente do que tem de fazer, pega-lhe e, com ele nos braços, sobe a escadaria em espiral.
            Ao cimo das escadas, um homem espera-a e ela entrega-lhe o rapazinho.
            Num apertado abraço, tornam-se um só. Tudo está como devia ser... ou talvez nem tudo, pois é invadida por uma sensação de inquietude, uma sensação de que algo ficou por fazer..
v
            Sentindo o apelo do anjo que vira no patamar de baixo, decide voltar trás. Sente que o tempo se está a esgotar, mas precisa de saber.
            – Quem és tu?
            – Sou Ariel – responde ele numa voz  suave.
            –  Tens alguma mensagem para mim? Tens algo para me dizer?
            – Não. Quero apenas desejar-te um feliz aniversário – disse o anjo com um brilho divertido no olhar meigo.
v
            –  Não faço anos.. O meu aniversário é em Março. Não é em Setembro, pois não?
            Foi então que caiu em si. Que tipo de partidas estaria a sua mente a pregar-lhe? Num momento tinha saltado do penhasco e, no outro, estava ainda ali…
            Com as pernas a tremerem, recuou, afastando-se da borda do penhasco, e sentou-se no chão. Ariel... então era assim que se chamava o seu Anjo da Guarda! Ele tinha feito mais do que desejar-lhe um feliz aniversário. Tinha-a conduzido pela morte e guiado de volta para a vida. Não voltaria a saltar. Fincaria os pés na vida e espantaria as nuvens escuras.
v
            Olá. O meu nome é Lydia e faço anos no dia 2 de Setembro.



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